Quem gosta do clima de fazenda
conhece bem aquele momento em que, na roda do tereré ou do mate,
proprietários e peões se juntam para contar um causo de assombração,
relembrar uma cobra traiçoeira, falar de enterros de tesouros ou de uma
luz misteriosa no céu. Fontes de informação e entretenimento do povo da
região, os causos pantaneiros são narrativas orais conservadas e
transmitidas pelos moradores da maior planície alagável do mundo.
Nascido em Ivinhema (MS), Ricardo Pieretti Câmara decidiu estudar essas
histórias em seu doutorado em Humanidades, pela Universidade Autônoma de
Barcelona. Ele foi atrás dos contadores de causos entre os moradores
das fazendas do Pantanal e observou que as narrativas pantaneiras, assim
como o próprio Pantanal, são moventes e dinâmicas, mas há uma forma e
um conteúdo que se preservam. Escolhendo dez contadores muito especiais,
todos do sexo masculino, em seis municípios distintos, o pesquisador
não poupou os ouvidos: escutou 161 histórias. Ricardo Pieretti apresenta
para os leitores da Cultura em MS um gostinho dessa pesquisa.
“– Eu caço onça aqui, no Pantanal e
agora esses dia me passaro um rádio amador lá de Corumbá, que a onça
tava, o pessoal num podia saí na cidade, de Corumbá, né. A onça tava
comeno. Aí eu fui pra Corumbá. Olhei no relógio, né. O relógio meu
pesava quarenta quilo. Era tudo de ôro, né. Quando ficava escuro, eu
ligava ele e crareava iguarzinho agora. De diamante com ôro, né, e
brilhante. Aí eu ia ino, assim, (se levanta e caminha) n’um triero, de
vagarzinho. De repente a onça pulô ne mim e eu saltei de lado e soquei o
pé esquerdo nas güela dela. Soquei o pé esquerdo. Eu tava até, de um
lado de butina, do otro lado descarço, né. Soquei o pé esquerdo nas
güela dela. A cabeça dela veio pará na casa do prefeito, em Curumbá”.
“Quando o prefeito abriu a porta, pra
entrá no gabinete dele, tava a cabeça da onça, lá. Varô a telha, quebrô a
lage e caiu na mesa. A cabeça dela era desse tamanho, assim. (faz um
círculo com os braços) Ele falô: – Isso aí tem que sê o Perigoso, né, no
pode! – E foi eu memo, né. Mais uma bichona! Oh o mãozão dela, oh!
Dessa grossura. (demonstra um círculo do tamanho de um prato) De um lado
de botina, do otro lado descarço, né, soquei o pé esquerdo nela, paaau!
Avoô a cabeça.”
O relato é de Seu Perigoso, famoso
contador de causos de Maracaju e cercanias. Ele se auto-intitula o maior
matador de onças do Pantanal e diz que com uma bala já matou mais de
500 de uma só vez. Valmir Noberto dos Santos é o nome de batismo da
fera. Ele nasceu em 1942, na fazenda Água Fria, no mesmo município.
Trabalha esporadicamente nos pantanais como furador de poço.
A primeira vez que estivemos em sua casa
para ouvi-lo foi no dia 12 de setembro de 2003. Já na porta ele nos
alertou que estava cansado e meio tonto, pois tinha chegado no dia
anterior de Nova York com o supersônico que seu padrinho Leonel Brizola
lhe emprestara.
Quem garantia a veracidade nas narrações
de Seu Perigoso era Dona Cida, sua mulher. Ela sempre esteve ao lado do
marido para confirmar a história, lembrar de outras e participar de
algumas. Há dois anos ela faleceu. Durante os três meses de luto, Seu
Perigoso não contou causos. Ele mora com a família em um bairro pobre de
Maracaju. É pai de nove filhos, cinco mulheres e quatro homens. Quem
lhe ensinou a arte de matar onça e de contar causos foi seu pai.
– Meu pai tinha uma espingarda de treis
cano, assim. Ele (se levanta para explicar melhor) botava a espingarda
num gaio de pau. Botava, assim, e ia circulano. Amarrava um barbante e
desenrolava no chão, de noite. Deixava armada e gatiada, né. Quando a
onça pisava no barbante, saía o tiro, peei! No otro dia ia vê, tinha
quinze, vinte onça morta. Treis cano assim. (manuseando um objeto
imaginário) Um aqui ó, um do meio e um aqui. Dava as treis partida. Com
mil quilo de chumbo. Chumbão grande. Botava cem quilo de pórva e a onça
pisava no barbante, né, e estorava o tiro lá, paaau! Saía nos treis
gatilho. Eu falei: – Eu vô lá, vô lá pra sete horas. – Cheguei lá, tava
aquele monte de onça morta. A bala só passava no ouvido, assim. Dentro
do buraco do ouvido da onça. Então o bicho ficô famoso, né. Aí pusero eu
de Perigoso, né, pra eu matá onça também.”
Seu Perigoso faz parte de um grupo de
artistas que está em extinção: os contadores de causos. O causo pode ser
considerado um gênero poético expresso oralmente e que tem sua temática
fincada na regionalidade. Em nossa região, essas narrativas são mais
visíveis no Pantanal e por isso são conhecidas como causos pantaneiros.
Eles são contados principalmente nas rodas de tereré e retratam o
cotidiano real e imaginário do pantaneiro. Munido apenas de sua
experiência e de muita imaginação, o contador cria, com gestos e
expressões, um cenário e nele desenvolve uma ação narrada.
Os contadores podem ser divididos em
três categorias: os livres, que não dão importância ao julgamento de seu
ouvinte e assim ultrapassam qualquer barreira do sentido da realidade;
os moderados, que não querem parecer mentirosos e para isto criam certos
limites de verossimilhanças; e os reprodutores, que fazem questão de
evidenciar sua reserva na veracidade dos fatos narrados.
Nem é necessário dizer que Seu Perigoso é
um belo exemplar do primeiro grupo. Além da falta de compromisso, os
narradores livres abusam da gestualidade e fazem de sua narração uma
encenação dramática. Os gestos diminuem nos contadores moderados e quase
inexistem nos reprodutores.
Passados os três meses de luto de Seu
Perigoso, ele voltou com tudo e sua neta de sete anos passou a ocupar o
papel da avó na função de fiadora das histórias, como a que segue
abaixo:
O causo das três onças montadas
“– Onça? A federal pediu pra mim num matá mais, né.
– É, pediu?
– É pra pegá ela viva.
– Ah! É pra pegar ela viva? E o senhor tem pegado?
– Aí eu comprei um gravadô lá na Argentina… Uma bateria, uma televisão, um gravadô, né. Guardei assim ó, dentro de uma mata, eu puis um tendão assim ó, com dois metro e meio de cumprimento, né, liguei a bateria pra crariá lá a televisão, e quando amanheceu o dia o patrão falô:
– Perigoso sumiu! – E eu vinha muntado nas treis onça. Muntado nas treis. Eu abri as perna, assim… eu muntado nas onça.”
– É, pediu?
– É pra pegá ela viva.
– Ah! É pra pegar ela viva? E o senhor tem pegado?
– Aí eu comprei um gravadô lá na Argentina… Uma bateria, uma televisão, um gravadô, né. Guardei assim ó, dentro de uma mata, eu puis um tendão assim ó, com dois metro e meio de cumprimento, né, liguei a bateria pra crariá lá a televisão, e quando amanheceu o dia o patrão falô:
– Perigoso sumiu! – E eu vinha muntado nas treis onça. Muntado nas treis. Eu abri as perna, assim… eu muntado nas onça.”
E assim Seu Perigoso vai contando causo.
Ele já foi assunto de tese de doutorado, defendida no “estrangeiro” e
por último foi filmado no documentário “Os Causos: uma poética
pantaneira”. Se duvidar, logo, logo se descobre que suas histórias são a
mais pura verdade.
Autor: Ricardo Pieretti